segunda-feira, 12 de novembro de 2007

"Por que não te calas?"


"Cimeira Ibero-americana não se resumiu ao grito de do rei Juan Carlos da Espanha ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, mas o episódio foi bem representativo do clima de confronto ideológico que acabou por ofuscar os acordos alcançados na reunião do Chile.
O grito de "Por que não te calas", do rei Juan Carlos da Espanha ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em plena sessão de encerramento da XVII Cimeira Ibero-americana, resume o clima de confronto ideológico que ofuscou os acordos alcançados na reunião do Chile. Minutos depois dessa espetada, enquanto o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, falava contra as multinacionais espanholas, o monarca retirou-se da sala, para regressar quando o secretário-geral ibero-americano, Enrique Iglesias, explicava os acordos obtidos nessa reunião anual de chefes de Estado e de governo de 19 países latino-americanos, mais Espanha, Portugal e Andorra.
A Declaração de Santiago, cujos 24 pontos apresentam directrizes e programas para alcançar a chamada "coesão social", lema da cimeira, passou a segundo plano devido ao forte debate sobre modelos de desenvolvimento promovidos pelos países da região, protagonizado por Chávez, Ortega, o presidente da Bolívia, Evo Morales, e o primeiro-ministro da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero.
Ter chamado de "fascista" ao direitista ex-primeiro-ministro espanhol José Maria Aznar (1996-2004) nas sessões plenárias de sexta-feira e do sábado valeram a Chávez a queixa do socialista Zapatero, que pediu "respeito" pelo ex-governante e solicitou a criação de "um código de conduta" para as próximas cúpulas. Segundo Chávez, Aznar apoiou o efémero golpe que sofreu em 2002 e agora desenvolve pelo mundo uma campanha contra o presidente venezuelano. A proposta de Morales de "abandonar o modelo neoliberal" e de devolver ao Estado a provisão de serviços básicos, fez Zapatero defender a "eficiência" do sector privado nessa área, embora com regulamentação estatal e pagamento de tributos.
Ortega somou-se ao debate, criticando o "império do capital globalizado" e dizendo que "Nós (a Nicarágua) queremos mobilizar recursos e facilitar a coesão social, mas encontramo-nos com um país totalmente privatizado", disse o presidente nicaraguense no seu discurso, em que também propôs criar um fórum que exclua os Estados Unidos e que substitua a Organização dos Estados Americanos (OEA). Por sua vez, Chávez, em todas as suas intervenções, falou dos "factores geopolíticos" ou "externos" que atentam contra as reformas impulsionadas por países como a Venezuela e a Bolívia. E reiterou que os Estados Unidos procuram desestabilizar governos reformistas financiando grupos oligárquicos nacionais contrários às mudanças. ‘Pode explorar este continente se as classes oligárquicas pretendem opor-se pela violência e métodos ilegítimos às mudanças necessárias", afirmou.
Cimeira dos Povos
Esse aspecto também foi abordado por organizações políticas, sociais, sindicais, de povos originários e de mulheres na chamada Cimeira dos Povos, realizada de forma paralela ao fórum dos mandatários. O Manifesto de Santiago, com as conclusões de mais de 60 mesas temáticas realizadas entre quinta-feira e sábado, denuncia o governo norte-americano "pela sua constante satanização e criminalização das lutas sociais" e pela sua "hostilidade aos governos que adoptam o rumo da emancipação popular".
"Constatamos, esperançosos, o ressurgimento de um extenso protagonismo dos movimentos sociais e das forças políticas progressistas cujas lutas articuladas, cada vez mais amplas e persistentes, influíram decisivamente na eleição - em diversos países - de governantes afins e sensíveis ao grande ideário de emancipação, unidade e integração latino-americana", afirma o texto de quatro páginas.
Entre esses governos é costume incluir, além de Chávez, Morales e Ortega, o presidente Rafael Correa, do Equador e, em menor medida, Luiz Inácio Lula da Silva, o argentino Néstor Kirchner e o uruguaio Tabaré Vázquez, que não participaram da sessão de encerramento. Esses governantes, diz o manifesto, impulsionaram "processos de mudança na região, que consideramos como um avanço de grande projecção histórica". No encerramento do encontro, no velódromo do Estádio Nacional, o próprio Chávez participou como orador.
No meio do choque da sessão plenária, a anfitriã da cimeira, a presidente Michelle Bachelet, pedia - com o rosto sério - que os chefes de Estado se concentrassem nos frutos concretos do fórum, como o Convénio Multilateral de Segurança Social que permitirá aos trabalhadores unificarem nos 22 países as suas contribuições para os fundos de reforma. Mais tarde, na entrevista colectiva junto com Iglesias e o presidente de El Salvador, Antonio Sca - que receberá a cimeira em 2008 - uma Bachelet mais sorridente diminuiu o dramatismo do facto dizendo que o importante era que, junto com uma legitima exposição das diferentes abordagens que convivem na região, se conseguiram resultados concretos.
Iglesias complementou que a reunião do Chile foi a mais rica em acordos na história desta instância, inaugurada em 1991 na cidade mexicana de Guadalajara, por incentivo de Juan Carlos, que participou de todas. O ponto nove da Declaração de Santiago propõe "cumprir, até 2015, os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, bem como todos os compromissos do Consenso de Monterrey, em particular com relação à mobilização de recursos adicionais para a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento, incluindo os países de renda média".
O artigo 19 fala em "implementar reformas tributarias por meio de acordos ou pactos fiscais ou outras formas de concentração político-social, que dêem visibilidade às políticas requeridas para o desenvolvimento humano sustentável e a coesão social, fortalecendo, por sua vez, a administração tributaria, evitando a fraude e a evasão". Outras iniciativas da cimeira são a habilitação de dois fundos: um de US$ 1,5 mil milhão criado pela Espanha para sanear e distribuir água potável a milhões de latino-americanos, e outro especial chileno para a protecção da infância.
No Plano de Acção de 53 pontos assinados pelos mandatários figura a criação de um dispositivo de prevenção de desastres naturais, que será estabelecido no Panamá; a aprovação da Carta Ibero-americana de Governo Electrónico; a adopção de um plano de mobilidade académica de pós-graduação e a do programa Rede de Bancos de Leite Humano. Este último uma iniciativa do Brasil, "que permite colectar leite materno em condições sanitárias adequadas e entregá-lo a 130 mil crianças por ano, e o que queremos é estender isso aos países que o desejarem e reduzir a desnutrição e a mortalidade de nossos bebés", explicou Bachelet. A cimeira também aprovou a criação de um observatório de avanços ou retrocessos em matéria de igualdade de género.
Ao encontro de Santiago faltaram apenas os presidentes Felipe Calderón, do México; Leonel Fernández, da República Dominicana, e Martín Torrijos, do Panamá, por diferentes problemas internos. Um dos aspectos destacados no Chile foi a necessidade de serem adoptadas metas concretas e de se estabelecerem formas de fiscalizar os acordos, com pediu expressamente Hugo Chávez na sessão de sexta-feira. Essa também foi um dos principais pedidos das 75 organizações não-governamentais que se reuniram em Santiago no III Encontro Cívico Ibero-americano, nos dias 7 e 8 deste mês.
A desenvoltura com que alguns presidentes discutiram deveu-se, em parte, à instauração, por Bachelet, de um espaço de diálogo mais aberto, denominado "retiro", na tarde de sexta-feira, que os jornalistas puderam acompanhar por um telão, mas sem áudio. Ali observou-se vários deles debatendo calorosamente. Os mandatários pediram que esse espaço se repita na próxima cúpula, embora tenham vontade de se reunir antes, disse Iglesias. A cúpula de 2008, em El Salvador, terá o tema "Juventude e Desenvolvimento", e as de 2009, 2010 e 2012 acontecerão em Portugal, Argentina e Espanha, respectivamente. Daniela EstradaIPS/Envolverde)

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