sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Traços Gerais


Voltava atrás para verificar se as luzes do seu carro estavam acesas, o sinal de aviso nunca tinha funcionado muito bem, aliás em nenhum dos seus carros e em nada da sua vida, mas pela primeira vez na vida estacionou o carro num lugar seguro e bem iluminado, a viagem iria ser longa.
No táxi e a caminho da estação o condutor reclamava-se um injustiçado cumpridor da lei, andava nesta vida há tanto tempo e nunca tinha visto nada assim!!! Gastou 200 contos a pintar o carro, fora o transtorno do tempo que esteve sem trabalhar, e agora uma nova lei já não o obrigava a tal. O governo faz leis para quem não existe, quem é que ganha para andar sempre a mudar o carro de cor? E só depois as corrige com nova lei! O pior de tudo é que a cor anterior era mais bonita e os clientes, cada vez mais exigentes, preferem a concorrência, quem é que se sente confortável num táxi desta cor?
Não se viam há muito tempo, esta era a alegria dos muitos reencontros.
- Evinha! Há quanto tempo!
Detestava que a tratassem por diminutivos, nunca se sentiu como tal, mas ainda não foi desta que o conseguiu repreender, e este não era o que mais lhe desagradava, pois também estava lá o seu nome.
Trinta anos, a ela não lhe estava a apetecer falar no que aconteceu nesses anos.
- Estás mais velha!
- Estás mais gordo!
- Deixei de fumar, lembras-te? Há trinta anos! Estava a ficar mais feio!
- Continuas o rapaz mais bonito que jamais conheci! - Afinal isso era importante para ele, admitia-o quando tentava minimizar essa característica, e apesar de ser verdade ela fez sempre questão de lho dizer.
Ambos lembraram a primeira e única vez que fizeram amor, não é que de uma história de amor se tratasse! Não tinha sido o sucesso que ele esperava, pelo hábito enraizado em todos os homens da sua geração! Nenhum dos dois percebeu muito bem aquela pequena noite, ela nunca quis encontrar uma explicação, acreditava que as coisas como estas se vivem apenas, e quando se explicam perdem a sua energia e influência para o futuro. Eva sempre soube lidar com o que aconteceu, apesar da distância e de nada ter percebido. Ele dizia estar a ser pela primeira vez infiel à namorada, ela ria como que de uma grande piada!
- Foste embora e não disseste nada!
- Era cedo para ti, meu querido, não te quis acordar! - Já não o chamava de amor! O tempo afinal passou pelas palavras!
- Li o teu livro daquele taxista que mudou a pintura do carro, fartei-me de rir, principalmente quando decidiu ir fazer ginástica para reduzir a barriga para os clientes se sentirem melhor no seu táxi! Casaste?
- Ainda hoje deve estar no mesmo café em que o deixei, medindo o tempo pelo acabar do seu cigarro, o resto do maço em cima da mesa, a carteira e o telemóvel. Ah! E penso que um copo de licor, sempre o mesmo copo, não gostava de beber, não sei se o copo lá estava, mas de qualquer modo compunha melhor o cenário.
Ela sempre lhe lá vira um copo mas agora apostava que não, ele tinha deixado de beber para lhe fazer a vontade, dizia ele! Estava a ficar com barriga e que o álcool diminuía o seu desempenho como companheiro. Nem o ousava fazer às escondidas, pois isso só mostrava o medo por ela e admiti-lo era pior para ele do que fazer de conta que tinha sido opção sua.
- Ainda hoje deve estar no mesmo café em que o deixei Olhando quem passa e parando o olhar numa rapariga mais atraente percorrendo a sua direcção enquanto estava ao alcance da sua vista, não com qualquer intenção mas pelo hábito enraizado em todos os homens da sua geração, nunca ousou trocar um olhar mais demorado com qualquer uma delas! Foi lá que o encontrei, naquela altura ainda acreditava que o conseguia tirar de lá! Passado pouco tempo achei que não tinha esse direito e comecei a passar por lá de vez em quando, cada vez menos. Num desses encontros fizemos um filho...
- Porque vieste embora?
- Ele zangou-se comigo, nunca o tinha ousado fazer! Tinha esquecido as luzes do carro acesas e a bateria avariou. - És sempre a mesma! Sempre no mundo da lua! Quando é que começas a ter atenção aonde pões os pés? - Eu não via esse tipo de importância no acontecimento. Acho que percebi que estava farto de mim, pois eu era assim mesmo! As luzes ficavam muitas vezes acesas e ele achou sempre piada, mas a bateria nunca tinha avariado! Eu acho que ele ficou logo zangado a décima terceira vez, mas nunca se apercebeu pois eu antecipava-lhe sempre um pedido de desculpas e um sorriso quase de chantagem – Deixei a luz do carro acesa! - Dizia. Quando queria dizer: - Não te vais zangar pois não?
No fundo já se percebia que era ele que a queria mudar, perdeu a paciência!
Texto e pintura de Ana Monteiro

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei meu amor.
Sinto-me obrigado a dizer-te que devias investir mais tempo na escrita. Para quem se queixa que não tem tempo para nada devias fazer opções, olha deixa de vez a política que já tens mais tempo para escrever e vem até cá baixo visitar-me.