quarta-feira, 3 de novembro de 2010

...no intervalo no outrora... ana monteiro...

“os animais não têm religião”

salteadores do fogo e também animais religiosos

será apenas verdade na incauta metrópole, a que chamámos o arrojo da antítese, será apenas verdade no luto arregalado, a que chamámos o arrojo do embrião, será apenas verdade no lastro do musgo, a que chamámos a evidência do resguardo.

“os animais não têm consciência do tempo”

salteadores do momento e também animais ateus

qual a data do começo do mundo?

a data dos lírios e das amoras. suspeito que as amoras foram já catalogadas, suspeito apenas. a data da areia e dos seixos. suspeito que as amoras já foram condenadas, não ficam para semente. suspeito apenas.

amargos paradoxos

o animal mais velho do mundo, imbricadas arestas, mandíbulas salientes em perpétuo movimento, depositou mais de trinta mil ovos próximo do recife dos lábios, próximo do pasto de borracha no pudor do arado.

qual da data do começo do mundo?

o animal observou sempre o que passou à sua volta, à mercê do predador.

salteadores da individualidade e também animais solitários

será apenas verdade no mofo dos corredores, a que chamámos o ruminar da justiça, será apenas verdade na espera dos semáforos, a que chamámos o ruminar da vastidão, será apenas verdade no enfeite do fadista, a que chamámos o pudor do absurdo.

qual a data da encomenda da suspeita?

A suspeita pegou, há-de haver uns tantos e tal anos, pelo menos, serviu como palco da tragédia a sôfregas figuras à deriva, residindo aí a sua maior vantagem; oxalá, não em demasia. A suspeita pegou, há-de haver uns tantos e tal anos, pelo menos, serviu como enxurrada no pomar a sôfregas gargantas à deriva, residindo aí a sua memória para guardar; oxalá, não em demasia.

Respira-se no ar

a chávena de cinzas

umas cinzas e tanto

respiração acessória

a chávena com oxigénio dissolvido

substitui o pulmão¬

amargos paradoxos

enxurradas no pomar das camélias

em que idade vai o mundo?

um clássico, a pergunta e o perguntar

protejam o meu filho até ao fim, ele é um de nós

mondo as ervas num campo de minas e omito a paternidade descuidada do velho do restelo. e, não se pergunta a idade ao mundo, pesa-nos a balada. é quase certo que a maioria dos animais lhes ganham a ambiguidade dos dias, não do romance. é quase certo que à maioria dos animais não lhes dói a memória, mas a lucidez, as migalhas.

“os animais não têm consciência do tempo”

mondo as ervas do retrato, suspiro na agonia, um acordeão que resiste no pomar.

numa chávena de cinzas, o temor pelos farrapos da noite

umas cinzas e tanto

até que idade vai o mundo?

o erro de malthus , o inesgotável petróleo

alimentados divergentes cenários de expoente catástrofe, revisitadas páginas fósseis de teorias, alimento da progressão gráfica da população. alimentados divergentes cenários de expoente catástrofe, rasgaram a membrana na espiral do remoinho, protegeram as emoções do momento.

pomares de camélias amarelas em muros mudos

pomares de camélias amarelas em decotes maduros

há que ranger os dentes,

a flor com mais pétalas do mundo, imbricados estames, pistilos salientes em perpétuo movimento, depositou mais de trinta mil variedades próximo do recife dos lábios, próximo do pasto de borracha no pudor do arado.

“os animais não têm religião”

salteadores do fogo e também animais religiosos

a pregação aos peixes, seus fiéis ateus voam acima da trégua, alguém pagou a suspeita, há-de haver uns tantos e tal anos, pelo menos, serviu como palco ao reajuste dos estames do paradigma, residindo aí a sua maior vantagem; oxalá, não em demasia. Alguém pagou a suspeita, há-de haver uns tantos anos e tal, pelo menos, serviu como exaltação no pomar a exaltações e confortos mediáticos, residindo aí a sua memória para guardar; oxalá, não em demasia.

há que ranger os dentes

no intervalo do outrora

embora fragmentada ficção, a incauta metrópole nasce e vive a maior parte do seu tempo na memória do detalhe, na vibração do campos cativos de anseio no seu subúrbio. embora fragmentada ficção, a incauta metrópole nasce e vive a maior parte do seu tempo no desejo do detalhe, na alucinação dos campos tingidos de afecto no seu subúrbio.

- há que ranger os dentes

estrangular o silêncio na trégua descalça

eu não diria: “- melodia”, eu diria “-suspiro”

enquanto o sino, repousa, na ausência do abraço

ressoa na meia hora na espiral do orvalho

resiste na meia hora a melodia na lapela das árvores da floresta

valerá a desmemória…

sinal de alarme

amargos paradoxos

enxurradas no pomar das camélias

Ana Monteiro em "Oxímoro, no intervalo do outrora"

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