domingo, 16 de outubro de 2011

...machado de tinta...

Acordava-o todos os dias a velha história de ir comprar cigarros ao quiosque da esquina e nunca mais voltar, aliás, não mais voltar. Todas as suas histórias ficam na auréola da esquina, aquém do primeiro acto da sua inconsciência, nunca foi porque nunca soube que para lá não haveria nem madrugada nem mudança de vento…
Nunca entendeu a raiva que ela lhe tem, entender tornava-se algo muito, muito difícil, para além da primeira sombra da sua inconsciência. A raiva, o único sinal da loucura, irrompia nela nos seus detalhes mais quotidianos. A raiva até pode ser algo mais do que isto, ele nunca alterava, aliás, não alterava, o tom das palavras para estancar a ferocidade da estúrdia.
- O nosso tempo não se esgotou porque tu já não existes! sozinho, noite atrás de noite, não tenho problemas com o eco da tua autoridade! Afinal sou o teu marido! Sacia toda a tua raiva no nastro do meu lençol. Sinto que não te pertenço, nem consolo essa tua raiva.
Desaguava todos os dias na penúltima paragem. Percorria, todos os dias, a pé, e sem esforço, os restantes 3 km que o separavam da esquadra onde todos os dias faz serviço. O 82, finda, todos os dias a sua linha, no jardim das oliveiras, mesmo em frente à esquadra… saía sempre na anterior porque nunca soube o que estava para lá. Atormentava-se todas as viagens com a velha história de ir comprar cigarros ao quiosque da esquina e nunca mais voltar, aliás, não mais voltar.
Nunca foi uma compulsão.
- Carrego sempre o teu livro a todos os sítios que vou… 186 páginas… uma única palavra nas 186 páginas… 74000 vezes repetida…
coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros, coentros,… Todas as noites leio de forma aleatória algumas páginas do seu livro,  uma autobiografia da catástrofe.
- Gostava de discutir consigo alguns dos parágrafos. Mas estou aqui para o interrogar! Um jovem escritor! Apanhado a roubar cobre! Um ladrão de cobre! Houve alguma alteração do primeiro para o segundo capítulo pelo facto de ter viajado de nova Iorque para Amesterdão? A mim… Apeteceu-me beber um copo de água na transição… diz aqui no relatório, que o roubo do cobre lhe deu um uma especial sensação de prazer, não foi uma compulsão ou uma necessidade… diz aqui no relatório que aquele cobre o libertou do lugar da raiva… diz aqui no relatório que uma afasia hereditária o impediu de pronunciar e até soletrar a palavra coentros…
A teimosia dos faróis do 82 não são as luzes do quiosque da esquina… já é demasiado tarde para invocar a tinta do poeta - “ enterrai-me com a minha guitarra”! será antes: ”enterrai-me antes com o meu machado!”... ana monteiro

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